Notavelmente, um dos diretores mais conceituados no momento dentro do cinema de terror é Mike Flanagan, diretor de ‘Doutor Sono’ (2019) e ‘Hush: A Morte Ouve’ (2017). O diretor vem se mostrando como um dos nomes mais promissores no gênero, contudo, sua obra mais emblemática não foi direcionada para as grandes e telas, e sim, diretamente para a televisão.
A Maldição da Residência Hill é uma das séries de terror mais criticamente bem aclamadas já vistas na televisão, e esse mérito se traduz notavelmente na complexidade do roteiro, na construção de personagens e dinâmicas humanas muito críveis e complexas misturadas a uma teia de eventos sobrenaturais e mistérios altamente engajantes. Nesse sentido, está posto o objetivo deste artigo: entender de que forma a série constrói tais qualidades e o que essa produção possui de tão especial.
O TEXTO A SEGUIR CONTÉM SPOILERS!
A Maldição da Residência Hill desenvolve sua história intercalando entre eventos no passado e no presente. O cerne da história é baseado na família Crain, uma típica família norte-americana cujos membros têm suas vidas mudadas para sempre ao se mudarem para um casarão com o passado sombrio: a Residência Hill. As duas fases principais da história são o passado, com os cinco filhos da família ainda crianças, e o futuro, quando eles já são todos adultos e ainda lidam com a sombra dos eventos que se desenrolaram na residência e eventualmente devem confrontar esse passado.
O mais interessante é como cada um desses personagens desenvolveu um elo único com a casa e como isso influenciou o modo como desenvolveram-se como adultos, por exemplo: o filho mais velho Steven (Michiel Huisman) desenvolveu um intenso ceticismo com o sobrenatural e se tornou um escritor de histórias de fantasmas, tendo inclusive escrito sobre os eventos da Residência Hill, apesar de não acreditar em nada do que os seus familiares diziam viver lá dentro. Entretanto, os impactos mais avassaladores foram sentidos pelos gêmeos Nell (Victoria Pedretti) e Luke (Oliver Jackson-Cohen) que possuíam uma conexão psíquica e dons mediúnicos, algo que fazia com que ambos fossem mais suscetíveis à presença das assombrações na casa. Nell desenvolveu uma intensa depressão ao longo de sua vida, tudo isso somado ao fato de que ela nunca deixou de ver o fantasma da ‘moça do pescoço torto’ desde sua infância e Luke desenvolveu um vício em drogas que o afundou completamente em todos os sentidos, fazendo com que ele vivesse entrando e saindo da reabilitação.
As outras duas irmãs, Shirley (Elizabeth Reaser) e Theodora (Kate Siegel) também não se salvaram das sequelas mentais, Shirley desenvolveu um intenso senso de auto cobrança e perfeccionismo, enquanto Theo criou para si mesma diversas muralhas internas que a impediam de se conectar com outros, algo que dialoga intimamente com seu dom único de poder entrar na mente das pessoas com o toque, o que faz com que ela use luvas e evite contato humano.
É perceptível até aqui o modo como esse roteiro tece uma tapeçaria em que os fios do trauma e da dor psicológica dificilmente se diferenciam dos fios do sobrenatural, formando uma peça de arte que encontra uma mescla perfeita dos dois mundos. De início, pode parecer que todas as visões de fantasmas e eventos anômalos podem ser de fato somente produto da imaginação e de transtornos, algo que é fortemente endossado pelo ceticismo de Steven, entretanto, tudo isso começa a mudar já no final do primeiro episódio quando dá-se o evento que norteará o restante do enredo: o suicídio de Nell.
“Eu me afasto de mim mesma, como se me olhasse de fora, em um espelho, e vejo que sou uma sombra, um ser que não sente” (Sylvia Plath, Livro: A Redoma de Vidro)
A citação acima é essencial para o entendimento do que se passa com Nell: uma moça assombrada por um ser que representa o destino fatalista que a sombra da Residência Hill impôs sobre sua vida. O espírito da moça do pescoço torto é uma maldição inevitável, como se fosse a história que a casa escreveu para Nell no momento em que ela pisou ali dentro, o próprio reflexo distorcido de sua morte que a casa arquitetou e executou.
De certo modo, a personagem de Victoria Pedretti é o coração dessa trama, ela é a personificação da ambiguidade entre a doença mental e a influência espiritual, algo que se traduz na própria evolução da interpretação dos personagens sobre a morte de Nell. Inicialmente, todos acham que Nell herdou a depressão que supostamente também havia custado a vida de sua mãe, entretanto, os eventos que se desenrolam mostram na verdade que Nell e sua mãe nunca foram insanas, e sim, que possuíam uma sensibilidade que as tornou influenciáveis pelos males da casa.
Esse conceito parece muito similar ao que se observa em certas obras de Stephen King, como o Hotel Overlook em ‘O Iluminado’, um hotel maligno que funciona quase como uma entidade senciente que agrega em si as histórias, males e fantasmas que se adaptam para atormentar cada personagem de maneira muito íntima, gerando uma linha tênue entre o paranormal e os transtornos mentais. Curiosamente, como já mencionado, Mike Flanagan dirigiu ‘Doutor Sono’ filme baseado no livro homônimo de Stephen King que serve como sequência para O Iluminado.
A influência de King também parece se traduzir na forma como Mike Flanagan retrata o abuso de drogas, transtornos mentais e o vício, algo que é muito observável no personagem de Luke, o irmão mais decadente na vida devido ao uso de entorpecentes. De forma similar, King escreveu o personagem de Dan Torrance em Doutor Sono, o garoto que foi assombrado pelos fantasmas do Hotel Overlook quando criança e se tornou um adulto viciado e problemático, o que também foi adaptado por Flanagan no filme.
Isso mostra como Mike Flanagan conseguiu criar essa mesma sensação que Stephen King criou: o peso de uma infância recheada de fantasmas, transtornos e tragédias que estão personificados por um edifício que encerra em si todos os males que afligem a mente e o espírito, gerando uma sombra sinistra que se projeta com desdobramentos destrutivos por toda a vida de um personagem.
Essa obra possui uma forte base de sustentação na tragédia pessoal de cada personagem, principalmente sobre como cada um foi afetado pelo suicídio da mãe dentro da Residência Hill; nesse ponto, vale a pena citar também a importância do pai, Hugh Crain (Timothy Hutton), que parece ser aquele tipo de personagem que esconde algum segredo sujo sobre os eventos da casa, mas na verdade, o único segredo que ele escondeu foi sobre como tudo que aconteceu ali dentro realmente foi obra de forças paranormais.
Esse personagem é o maior exemplo de sacrifício pessoal dentro da obra, ele preferiu ocultar a verdade dos filhos e ser visto como um pai omisso que não pôde evitar a morte da mãe, do que revelar que sua esposa se matou por influência de espíritos que também a fizeram envenenar uma criança inocente e quase matar Nell e Luke, tudo isso apenas para proteger a lembrança que seus filhos tinham da mulher.
“A tragédia não é o que acontece, mas a maneira como o vivemos” (Emil Cioran, Livro: Breviário de Decomposição)
Poucas frases ilustram tão bem o que aconteceu com Hugh quanto o excerto acima, algo que reflete profundamente sobre como suas ações, apesar de necessárias, aprofundaram em cada um dos seus filhos uma série de determinações que mudaram a forma como cada um sentiu, viveu e processou aquela tragédia. Toda essa tensão emocional que é desenrolada com o avanço dos episódios gera uma imersão tão profunda na vida daquelas pessoas que às vezes pode até puxar o espectador um pouco para fora do foco do sobrenatural, entretanto, quando a série se propõe a usar o seu terror, ela o faz de maneira magistralmente efetiva.
Conclusão:
A Maldição da Residência Hill é uma obra emocionante que desafia qualquer noção de que o gênero do terror não pode construir narrativas inteligentes, tocantes e inspiradoras. É difícil terminar essa série sem pelo menos derramar uma lágrima, seja por sentir a dor dos personagens, o amor que os une ou o que os leva a confrontar seus demônios pessoais, ao passo que confrontam a influência dos males que a casa projetou sobre suas vidas.
Essa série explora a complexidade da natureza humana e como as pessoas podem cometer erros e ainda assim serem capazes de grandes atos de amor, compaixão, superação e perdão. Nada nessa obra é simples como preto no branco, às vezes as coisas são cinzentas, às vezes cheias de facetas..
Alagoano, Redator do EvilHazard, fã do universo do Terror e apaixonado por Resident Evil