O mundo de Resident Evil, sabemos bem, é caótico. Ele tem megacorporações realizando atividades sombrias junto de governos, delegado de polícia impedindo investigação de assassinatos bizarros, terrorista mandando doença pros outros, vírus transformando cidades inteiras em zumbis, sapo gigante com garras engolindo gente, praga de mofo, “lobisomem”, parasita que come cabeça…
Ufa, ainda bem que nada disso é real, não é mesmo?
Bom, por mais assustador que seja dizer algo assim, nem tudo isso é só ficção.
É claro que no mundo real não temos empresas e governos criando monstrões bizarros sedentos de sangue para servirem como soldados, mas ele está cheio de empresas realizando atividades ilegais, políticos promovendo guerras injustas e armas sendo desenvolvidas para deixar essas guerras ainda mais letais.
Qualquer produto cultural tem como inspiração não somente outros produtos culturais, mas também (e principalmente) o mundo real e a história da humanidade. Artistas, escritores e também desenvolvedores de games criam suas obras quase sempre para pensar sobre as dúvidas, os dilemas e os problemas do nosso próprio mundo, e com Resident Evil não poderia ser diferente.
Mas qual é a mensagem de Resident Evil, afinal? Que referências nos jogos, filmes, mangás, livros etc podemos captar para identificar isso?
A destruição de Raccoon City carrega grandes semelhanças com um evento extremamente traumático da história japonesa, que é a destruição das cidades de Hiroshima e Nagasaki pelas bombas atômicas enviadas pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Se há um simbolismo intencional nisso, é difícil dizer. Mas ambos são consequência de uma mesma coisa: da busca perversa do ser humano por armas invencíveis contra outros seres humanos.
Hiroshima e Nagasaki eram cidades onde havia forte indústria de apoio para a guerra. As bombas atômicas as destruíram, mas com elas levaram muitos milhares de vidas. Cidadãos inocentes tiveram suas vidas ceifadas tanto quanto aqueles envolvidos com as barbáries do conflito. E Raccoon City, por sua vez, era o parquinho infernal da Umbrella, uma empresa de um ramo muito específico e particularmente antitético da indústria da guerra. Sua extinção, porém, sequer veio do inimigo – ela veio dos próprios comprometidos com a Umbrella. De cobaias a funcionários a evidências de um crime gravíssimo, Raccoon City foi do início ao fim nada menos que um laboratório de testes de uma empresa que colaborava com a obsessão de guerra do governo dos Estados Unidos.
O desenvolvimento de Resident Evil começou em 1994. O mundo mal havia saído da Guerra Fria. As décadas anteriores haviam sido marcadas pela ameaça de uma guerra nuclear que poderia dizimar o planeta inteiro. Isso sem contar que a disputa entre União Soviética e Estados Unidos, ainda que não tenha gerado um conflito direto entre as duas potências, teve subconflitos menores derivados dela, como a Guerra do Vietnã, a Guerra do Afeganistão e a Guerra da Coreia. E, depois disso, outras guerras de ampla projeção midiática se seguiram, como a Guerra do Golfo.
Portanto, o mundo vinha de um período terrível de constantes guerras, muita destruição e morte de civis inocentes.
Kenichi Iwao, criador de vários dos principais conceitos de Resident Evil, contou ao site Crimson Head que considera que o maior medo vem daquilo que se aproxima da nossa realidade. E essa realidade medonha não vem só da vulnerabilidade do humano perante a transformação em zumbi. Ela vem também do poder que outros humanos têm sobre isso, sobre a vida e a morte de outras pessoas. E poucas coisas representam isso tão bem quanto armas e guerras.
Quando falamos em “armas”, não falamos só de fuzis ou bombas. O napalm usado extensivamente no Vietnã é uma arma, do tipo química, assim como gases tóxicos. E doenças também. Doenças são armas biológicas.
Diversas potências como Estados Unidos, União Soviética, Alemanha, Japão e França se empenharam em pesquisar armas biológicas em algum momento de sua história. Grupos terroristas também já fizeram uso delas. A bactéria causadora do antraz, por exemplo, é um microrganismo que já foi usado como arma em diversas ocasiões nos últimos 100 anos. E não são só doenças humanas que são armas biológicas, porque também já se fez o uso de patógenos capazes de destruir a produção agrícola que alimenta uma população, algo que causa grande desestabilização social. Leia mais sobre esses casos aqui.
Essas armas biológicas da vida real não são monstros musculosos com garras, tentáculos e dentes, mas são tão devastadores quanto – e sabemos muito bem disso, pois, mesmo sem estarmos em um contexto de guerra biológica, estamos neste exato momento vivendo o caos de uma doença nova no organismo humano.
No mundo de Resident Evil, a Umbrella vendia bioarmas para o governo dos Estados Unidos e provavelmente para outros governos também. Como se não bastassem os propósitos já ilegais da Umbrella, ela também se envolveu em um nicho de mercado tão antitético quanto ela própria. Isso foi gerando um efeito dominó quando, após sua queda, suas armas biológicas foram parar nas mãos de organizações criminosas e terroristas. Na vida real, sabemos que isso também acontece com as armas “normais”, afinal, o crime organizado e as organizações terroristas conseguem seus arsenais de algum lugar, certo?
E vejam só: o combate a tudo isso é justamente o objetivo de todos os nossos queridos protagonistas e de organizações como a BSAA e a TerraSave. Este é o elemento comum a todas as tramas de todos os jogos e outras mídias de Resident Evil.
Portanto, apesar de ser um jogo caracterizado como violento, Resident Evil é, de alguma forma, uma obra com uma mensagem pacifista, contra as guerras e contra toda uma estrutura por trás dela. As armas biológicas, a Umbrella, a Tricell, a The Connections e tantas outras são metáforas para a poderosa e cheia de influência indústria da guerra nos rumos do mundo que temos na vida real.
Em um mundo repleto de guerras, de desigualdades sociais, de fome, de exclusão, de preconceitos e de falta de esperança, a ficção faz o papel de nos dar forças e inspiração para pensarmos em alternativas e tentar mudar nosso próprio mundo. Talvez não consigamos ser grandes lutadores como Chris, mas sempre podemos ser uma Claire ativista e protetora ou uma Rebecca cientista pelas grandes causas.
Quem disse que não podemos aprender e refletir com Resident Evil, não é mesmo?
Natural de Curitiba. Historiadora e amante incorrigível de Resident Evil. Escritora no blog Arklay’s Library e na coluna Evil Library no EvilHazard.