Poucos jogos têm a sorte de serem perfeitos, mas acredite, Silent Hill 2 é! Mesmo após anos de seu lançamento original, tudo neste conto de obsessão, culpa e redenção desesperada parece deliberadamente colocado; todo aspecto é perfeitamente planejado. Não é o caso de afirmar que – mecanicamente – Silent Hill 2 é o ápice do desenvolvimento de videogames, longe disso. No entanto, como os temas do jogo se alinham confortavelmente com a tecnologia na qual foi criado, e por que o conteúdo foi cuidadosamente organizado, este é um dos raros exemplos de um título que poucos mudariam de qualquer forma. E ainda está inspirando jogos de terror até hoje, como o memorável Resident Evil 7.
Por que, afinal de contas, Silent Hill 2 pode ser considerado perfeito?
Silent Hill 2 compartilha uma conexão íntima com Assassin’s Creed, que está longe de ser uma experiência de terror (a menos que você tenha visto o bug de faces internas no Unity). Ambos os jogos criaram desculpas convenientes para suas falhas, tornando-os exemplos de design de jogos. Assassin’s Creed tem o Animus – um sistema de realidade virtual que o herói do jogo usa para a maior parte da ação. É uma maneira conveniente de explicar coisas como barras de saúde na tela, tentativas infinitas e paredes invisíveis – estilo de jogos clássicos que aceitamos como algo que simplesmente não seria aceitável no mundo real. Ao dizer aos jogadores que seu herói está jogando “um jogo dentro de um jogo”, a Ubisoft evita cuidadosamente os elementos menos realistas de sua história (e quaisquer erros não intencionais) para criar uma narrativa que contenha uma camada extra de autenticidade; que se sente mais perto do mundo real do jogador. Até vimos a Ubi dar um passo adiante, posicionando a Abstergo, fabricante do Animus, como uma empresa real.
De uma maneira bizarra, Silent Hill 2 faz a mesma coisa. O jogo tem uma qualidade de sonho. Nada sobre isso parece real para começar. Tudo começa com o protagonista James Sunderland considerando seu reflexo em um espelho sujo de um banheiro (um aceno inteligente para o tema abrangente da autodescoberta, e talvez uma referência insolente aos olhos sendo a janela para a alma), forçando imediatamente o jogador a certificar-se quem eles estão controlando. Eles instantaneamente se tornam parte do pesadelo de James e, a partir de então, tudo o que acontece o faz dentro do contexto desse estado de irrealidade. Enquanto você desce o caminho excessivamente longo para a cidade, você está mergulhando mais fundo no pesadelo de James. Depois de aceitar isso, qualquer número de defeitos técnicos pode ser escrito como parte do sonho bizarro em que existe no jogo.
Pouco fraco? Bem, vai um pouco mais fundo, graças a um punhado de boas coincidências e pedaços inteligentes de design. Primeiramente – o nevoeiro. Silent Hill 2 foi criado em um console (PS2) poderoso mas ainda assim limitado, então, a exemplo do que fizeram em Silent Hill 1, ao invés de renderizar a cidade inteira até onde os olhos podem enxergar, limites técnicos forçaram os desenvolvedores a cobrir com um pouco de neblina. Eu acho “forçado” – as chances são de que a equipe tenha ficado feliz em fazê-lo, porque há algo profundamente inquietante em ouvir as criaturas se arrastando na neblina. A maior parte do horror ocorre então na imaginação do jogador, quando eles se perguntam em que momento o monstro virá.
O nevoeiro, veja você, é agora parte integrante do jogo. Quando foi reduzido nas modificações HD para PS3/360, diminuiu a experiência. O mesmo se aplica aos controles agora desatualizados. Para lutar, você precisa puxar um gatilho, mirar e pressionar um botão no pad. O efeito é sempre abaixo do esperado, como se o jogo estivesse deliberadamente fazendo você se sentir perdido com o que você é. James é apenas um cara normal (bem.. meio normal), não um soldado ou um ninja. Ele é horrível em uma briga. Quando você tenta correr, os controles originais do tanque e os ângulos da mira fazem dele estranho, irritante. Como jogador, você deveria se sentir fraco, e à mercê dos monstros que podem- ou não- estar todos na sua mente.
Até certo ponto, o recente Resident Evil 7 joga com sentimentos semelhantes de desamparo. Você está trancado na primeira pessoa, forçando-o a viver dentro do horror e nunca se separar dele. Jogue em VR, e isso é levado a um nível totalmente novo. É outro exemplo de criadores de conteúdo que pensam sobre os benefícios e os limites da tecnologia atual, e a dobram para fazer com que o jogador se sinta vulnerável diante do terror sobrenatural. Kojima deliberadamente usou o formato no teaser jogável P.T. (uma pequena área pronta para uma exploração repetida) para aumentar a tensão e desdobrar lentamente uma história ao longo de várias horas. É um uso inteligente da tecnologia e das expectativas existentes.
Agora, você provavelmente está pensando “ainda não entendi por que o jogo é perfeito”. A quantidade de traços considerados do desenvolvedor confunde a linha entre intencional ou acidental. Talvez os controles sejam ruins. Talvez todas as portas estejam trancadas porque não poderiam ser incomodadas para renderizar mais quartos, e não (como seria ideal) para reforçar o sentimento de desorientação e incapacidade de escapar em pânico. Bom, então por que o jogo aproveita para mexer com você de outras maneiras? Seria do mesmo jeito com que ele muda o final dependendo de detalhes que são aparentemente nulos dentro do jogo? Por exemplo, se você passar a maior parte do seu tempo com a vida abaixo de 50%, receberá o final “Água”, em que James comete suicídio ao entrar com seu carro no Lago Toluca. São os criadores presumindo que você não se importa com sua própria vida, já que não se incomoda em se curar. E quanto ao cara morto do apartamento Wood Side, que se parece muito com James? Existem muitos exemplos de design de jogos bem feitos que descartam os defeitos como propositalmente desajeitados.
E depois há Maria. Ela é o pivô no qual o jogo perde equilíbrio; a manifestação física dos desejos de James; a mulher que ele sempre desejou que Mary (sua esposa morta) fosse. Seu constante ato de desaparecer e reaparecer mantém o jogador desorientado, enquanto a ameaça do impiedoso Pyramid Head (sim, ele é a manifestação física da culpa de James) os mantém no limite. Você nunca se sente confortável jogando este jogo. É uma combinação potente, mas que permanece indefinida pelo tempo. Porque agora -assim como em 2001- você está tão impotente quanto confuso. Nós crescemos acostumados a ser tratados como heróis, não como vilões, e isso apenas aumenta os dispositivos e temas de Silent Hill 2.
Mais uma vez, Resident Evil 7 – ao reerguer a maior franquia da Capcom – nos afasta do desejo de poder que vemos em outros jogos. Apesar de não estarmos indefesos em RE 7, nunca há uma sensação de que você se sente forte e confortável, e isso está na raiz do grande horror. Acontece o mesmo com Outlast. Esses jogos seguem o exemplo de Silent Hill 2 de fazer com que os jogadores se sintam desconfortáveis consigo mesmos (e muitas vezes indefesos) enquanto progridem. É um belo truque. RE 7 também joga com noções sobre “quem de fato é o bandido”, usando-o para desequilibrá-lo. Em uma imagem espelhada de Silent Hill 2 “você começa a pensar que você é o ‘mocinho’, quando na verdade você é o vilão”, RE 7 imediatamente te apresenta aos durões que você já espera, antes de fazer você perceber isso no meio do caminho. Não há spoilers aqui, mas você sabe de quem eu estou falando.
Silent Hill 2 é um jogo perfeito, no entanto. Não é aquele que cria uma utopia irrepreensível, que garante 100% agradar quem o joga (será que realmente existe?), mas uma descida implacável e incômoda através do pesadelo de um homem, onde tudo de ruim e frustrante acontece como parte da experiência geral. Aceitando a imperfeição, direcionando-a para a derrapagem, talvez seja a única maneira de um jogo ser perfeito, e essa é a verdade de Silent Hill 2 e de seu brilho negro. Mesmo atualmente.
Adaptado do GamesRadar
Redator do EvilHazard, paulista, 21 anos, gamer amante de jogos de computador, fã de videogames antigos e de jumpscares em jogos de terror.