Resident Evil tornou-se popular por usar elementos de terror voltados ao body horror, a violência, os zumbis e os visuais extremamente grotescos de suas criaturas, entretanto, a franquia também já flertou e utilizou elementos de diferentes gêneros e segmentos do terror! Dentre algumas das influências que se percebem na ambientação e atmosfera de alguns jogos da série, residem múltiplas características do terror gótico, um dos subgêneros mais bem caracterizados dentro da cultura popular como um todo.
Este artigo irá explorar algumas das principais características do terror gótico, além de sua influência na cultura e também nos jogos da franquia Resident Evil.
Quando se usa a palavra ”gótico” é normal pensar em roupas pretas, vampiros, morcegos, cemitérios e até mesmo alguns personagens da cultura popular que tem uma caracterização visual alinhada com a de pessoas pertencentes à subcultura gótica. Antes de prosseguir com o artigo, é preciso ressaltar que todo o universo que compreende a subcultura gótica é permeado por importantes aspectos como música, filosofia, cosmovisões, política, arte, crítica, subversão, semiótica, comunidade, pertencimento e múltiplas questões identitárias. Contudo, em caráter de sintetizar os pontos que mais serão relevantes para a construção da ideia central desse texto, serão analisadas alguns referências fundamentais da literatura gótica em específico, que precede a existência da subcultura, a qual poderá ser melhor explorada futuramente em um outro texto.
A origem do termo ”gótico” remonta aos povos germânicos conhecidos Godos e Visigodos, esses povos foram responsáveis por diversas invasões ao Império Romano do Ocidente a partir do século III D.C; eles eram vistos como bárbaros, brutos e violentos, especialmente por não compartilharem dos costumes culturais de Roma. Depois de muitos anos de guerras, uma das principais razões para a queda do Império foram as invasões e conquistas dos povos germânicos, o que naturalmente fez com que os estilos de construções dos germânicos tomassem uma certa preponderância em relação ao estilo clássico vigente durante os anos de glória do Império Romano.
O primeiro uso do termo ”gótico” como adjetivo, entretanto, foi cunhado em caráter pejorativo pelo autor Giorgio Vasari, que chamava de ”Gótica” ou ”estilo bárbaro germânico” a estrutura das catedrais e construções que hoje são assim denominadas.
Acredita-se que a primeira obra de literatura gótica tenha sido ”O Castelo de Otranto” de Horace Walpole, publicada em 1764. Essa obra serviu para criar o modelo de uma história de terror ambientada em um castelo com um aristocrata envolto em mistérios, o qual serviu como inspiração para ”Carmilla” publicado em 1871 por Joseph Sheridan Le Fanu.
O livro conta a história da vampira homônima que passa a habitar o castelo de uma jovem sob o disfarce uma hóspede em necessidade e doente; dessa maneira, entende-se que o primeiro vampiro da ficção gótica é uma mulher lésbica (fato que é fortemente indicado no decorrer da trama) o que sem dúvida é muito importante e estabelece o vampiro como essa figura que representa a liberdade, a quebra dos padrões e a contravenção aos padrões sociais e heteronormativos na arte desde o começo.
Anos depois, em 1897, viria a ser publicado o famoso “Drácula” de Bram Stoker, que dispensa apresentações e foi fortemente inspirado (e possibilitado) por Castelo De Otranto e Carmilla. Em resumo, Drácula de Bram Stoker é com certeza a obra de terror mais importante já realizada, criando as características fundamentais do imaginário e do terror gótico, como por exemplo o isolamento, o medo do desconhecido, o temor perante um ambiente hostil e misterioso, o medo e os mistérios da morte, criptas, cemitérios, locais abandonados, superstições campesinas, monstros e seres surreais.
Seria possível discorrer sobre diversas outras obras de ficção gótica, entretanto, ao abordar especialmente Drácula e suas notáveis inspirações e legado para o terror, já é possível extrair o essencial para explorar os elementos góticos que permeiam diversos jogos da franquia Resident Evil; naturalmente, o primeiro jogo e seu remake são exemplos excelentes para iniciar.
Imagine-se jogando Resident Evil 1 pela primeira vez, sem ter tido nenhum tipo de contato com outra entrada da franquia ou conhecimento prévio da história. Assustador, não? O jogador está numa mansão monumental, com poucos recursos, várias possibilidades de caminhos e a incapacidade de saber exatamente o que se esconde por trás de cada porta a ser aberta, ou mesmo nos pontos cegos da câmera fixa. Tudo isso contribui para criar uma inconsciente sensação de opressão, como se além de sua grandeza arquitetônica, a mansão também possuísse uma grandeza metafórica e opressora, indutora de inseguranças e incertezas, por isso, entrar em uma safe room e ouvir sua música é reconfortante como mergulhar embaixo do cobertor em uma noite fria e escura.
![Fan Remake of 'Resident Evil' Appears With 'BIOHAZARD:RE1 Classic Edition' [Trailer] - Bloody Disgusting, resident evil 1 - thirstymag.com](https://bloody-disgusting.com/wp-content/uploads/2022/08/re1.jpg)
Essa sensação de isolamento, a beleza fúnebre e elegante da mansão, fora as ambientações da cripta e do cemitério, a incerteza da origem dos monstros, os recortes da história em arquivos, os choros de Lisa Trevor ao fundo na penumbra, tudo isso são detalhes que reforçam um goticismo de primeira em Resident Evil 1. Isso fica ainda mais claro quando, olhando da perspectiva da lore, nenhum dos personagens faz a menor ideia do que está acontecendo:
“Este lugar… Tire sua equipe daqui. Demônios… em toda parte…” – Richard Aiken para Chris Redfield.
A fala de Richard em seu leito de morte, destacada acima, mostra como sua mente correu para a explicação mais óbvia diante da contemplação do desconhecido em forma de seres tão deformados e hediondos naquela mansão: demônios. Não existe muito em termos de narrativa no início do jogo que indique que as criaturas são oriundas de um experimento viral megalomaníaco para criação de armas biológicas de guerra. Essa ambiguidade e atmosfera, sem dúvida representam um mérito que sempre destacará o primeiro jogo e o remake sobre vários títulos da franquia: a capacidade de contar uma excelente história de terror sem uma narrativa expositiva.
Seria impossível prosseguir nesta lista sem mencionar Resident Evil 4 (original e remake); certamente, é possível dizer que o jogo original, pelo menos em seus primeiros atos, fez uma geração inteira sentir uma boa parte do que fez o terror de Resident Evil 1 ser tão eficiente, ainda por cima agregando ainda mais referenciais góticos. No contexto do presente artigo, o jogo original vai ser mais enfatizado, uma vez que dá pra aplicar todas as qualidades dele ao remake, com o bônus do peso emocional relacionado à nostalgia e uma primeira experiência com o jogo.
O contato inicial com Resident Evil 4 coloca o jogador em uma situação muito parecida com a do início de RE1, só que dessa vez, a ambientação tem uma presença muito mais hostil. O salto gráfico do PS1 para o PS2 permitiu a ampliação daquela sensação de grandeza que havia no primeiro jogo, e talvez até tenha melhorado esse fator. Neste jogo, o protagonista Leon se encontra cercado por densas florestas, um local estranho e hostil com habitantes misteriosamente agressivos, maníacos e ardentemente devotos de uma seita que derramava sua sombra por toda a região. Curiosamente, esse jogo também possui o referencial gótico do aristocrata dono de um castelo que subjuga, abusa e é temido por toda a população local, personificado por Ramón Salazar.
No início de Drácula de Bram Stoker, Johnathan Harker ao entrar no povoado que fica nas cercanias do Castelo Drácula, é confrontado imediatamente com o medo e as superstições religiosas dos locais em relação ao misterioso e elusivo conde que habita aquele castelo. Existe esse aspecto do terror religioso ao estar em um lugar desconhecido confrontado por uma atmosfera generalizada de mau agouro em torno da missão que se deve cumprir naquele local. Esse tipo de terror é muito mais explorado em vertentes como o Folk Horror por exemplo em filmes como ”The Wicker Man” de 1973 e ”Midsommar” de 2019.
Tudo isso que foi abordado acima é algo que dá para se constatar em Resident Evil 4 tanto de formas mais escancaradas e hostis (os aldeões ativamente tentando matar Leon) quanto de formas mais sutis (como quando Leon diz sentir um mau pressentimento ao ver o poste com crânios pendurados logo antes de adentrar no vilarejo). Essa construção de “um mau agouro”, uma constante desolação e isolamento são coisas que deixam o jogo psicologicamente perturbador e fazem o jogador desejar uma próxima sala com uma máquina de escrever.
Para finalizar o artigo, o próximo título abordado será Resident Evil Village, uma vez que esse foi o jogo que mais abraçou esteticamente os referenciais do terror gótico. Seria redundante falar de Resident Evil CODE: Veronica e Resident Evil 7 por exemplo, pois muito do que foi falado de Resident Evil 1 e Resident Evil 4 se aplica perfeitamente a esses dois títulos.
Resident Evil Village é um título que está longe de executar o terror com o mesmo brilhantismo de Resident Evil 1 e Resident Evil 4, mas como foi dito antes, ele é o jogo da franquia que mais se assume esteticamente e tematicamente como uma obra gótica. Para começar, cada um dos 4 lordes carregam referencias temáticas a criaturas clássicas do romance gótico: Lady Dimitrescu é fortemente baseada no Conde Drácula (apesar das inúmeras semelhanças com Carmilla, os criadores confirmaram que ela foi inspirada em Drácula e em Elizabeth Bathory, a condessa de sangue), Heisenberg é inspirado em Dr. Victor Frankenstein, Salvatore Moreau é inspirado no Dr. Moreau do livro ”A Ilha do Dr. Moreau” de H.G Wells, e Donna Beneviento foi inspirada nas histórias clássicas de fantasmas (e talvez no Fantasma da Ópera, devido à mutação em seu rosto).
O jogo possui uma direção de arte toda voltada para a estética gótica, desde a ênfase no castelo, cemitérios, locais abandonados e detalhes que sugerem superstições dos aldeões por meio de penduricalhos de alho (para afastar os vampiros) insígnias de aparência ocultista e todas as simbologias relacionadas ao culto do deus negro, liderado por Mãe Miranda.
Em resumo, pode-se dizer que, apesar de ser uma franquia pesadamente inspirada em filmes trash, com fortes elementos de body horror, gore e ficção científica, Resident Evil possui uma grande gama de inspirações puxadas de diversos subgêneros do terror que se manifestam com diferentes graus de frequência e êxito. O terror gótico naturalmente não foi uma exceção a isso, uma vez que é uma das vertentes basilares para a concepção atual do gênero do terror e tem ramificações em diversas mídias.
Alagoano, Redator do EvilHazard, fã do universo do Terror e apaixonado por Resident Evil
