O gênero do terror vem passando por uma fase muito movimentada e com filmes para todos os gostos. Temos franquias “slasher” famosas ganhando sequências e reboots, filmes com assombrações, demônios e outros com temas mais psicológicos e humanos.
Dentro desse vendaval de novas produções e tendências, é vital destacar o trabalho que vem fazendo o estúdio A24 ao conseguir entregar com louvor filmes que, excelentes, não só se encaixam dentro das categorias mencionadas anteriormente, como também entregam fusões entre os estilos que resultam em cada filme e cada experiência deixar sua impressão única no espectador.
Os melhores filmes de terror da A24 são aqueles que não só entregam o terror baseado em determinada situação ou ameaça, seja um culto, um demônio ou um assassino, mas também são excelentes em expandir a dimensão humana e psicológica que permeia cada trama. O filme que será comentado hoje neste artigo é um perfeito exemplo disso, pois Pearl não é somente um filme slasher com uma assassina caricata e icônica, ele explora a degradação mental até a última fronteira.
Lançado originalmente em 16 de setembro de 2022, Pearl foi dirigido por Ti West (VHS 2012) e roteirizado pelo próprio em conjunto com a atriz principal, a anglo-brasileira Mia Goth (Suspiria 2018). Tanto o diretor quanto a atriz estiveram envolvidos em X-A Marca da Morte lançado em 13 de março de 2022, que cronologicamente é o sucessor de Pearl. Ainda haverá um terceiro filme para fechar a trilogia chamado ‘Maxxxine’ que será lançado este ano, também estrelando Goth como a protagonista homônima.
Apesar de ter sido lançado em setembro de 2022, Pearl somente chegou aos cinemas brasileiros em 09/02/2023, e o longa conta a história da vilã de mesmo nome presente em X ainda em sua juventude, quando tinha o sonho de ser uma grande estrela, apesar das inúmeras limitações em sua vida causadas por sua falta de conhecimento sobre o mundo devido ao estilo de vida isolado, sua família e o contexto histórico em que a trama se desenrola, sendo o ano de 1918, período em que a gripe espanhola assolava o mundo e a Primeira Guerra Mundial ainda estava em curso.
Para começar, em termos gerais, é possível dizer que a fotografia e o design de produção são muito efetivos em estabelecer a época em que o filme se passa. Não é um filme que se vale de referências forçadas sobre a cultura da época, ele quer ser um filme ambientado em 1918 e o espectador consegue acreditar piamente nisso até os créditos rolarem. Os cenários não são muito diversos, basicamente existe a fazenda com a casa de Pearl, uma pequena parte da cidade, os campos de milharais, o cinema e a igreja (caso a memória deste que vos escreve não esteja falhando) que são onde se desenrolam os principais eventos.
Todos os cenários estão apropriadamente detalhados e servem muito bem à imersão, especialmente os prédios antigos e o cinema, quando Pearl vai ao local é possível ver exemplos de filmes mudos do cinema arcaico. As transições entre a cidade e a casa da fazenda são bem executadas de um ponto de vista fotográfico e conseguem incutir a ideia de Pearl estar saindo do que ela considera ser o centro de todas as suas limitações e empecilhos ao seu sonho de ser uma dançarina, para o centro das infinitas possibilidades e conexão com a cultura do cinema e da dança, características que serão representadas por um personagem em específico.
Comentando mais sobre a fotografia, ela consegue ser eficiente na maior parte do tempo e consegue criar momentos bastante interessantes e tensos assim como os momentos de suspense em que não se sabe o que Pearl vai fazer e a câmera foca na personagem em uma determinada situação, deixando o espectador tenso e ansioso pelo resultado. Destaque especialmente para os closes no rosto da protagonista quando ela chora, se irrita ou fica completamente apática; existe uma sequência ininterrupta e sem cortes mais perto do fim do filme em que a câmera está o tempo todo focada no rosto de Pearl enquanto ela fala sobre si mesma, seus crimes, desejos e atitudes, deixando o espectador esquecer que existe uma outra personagem naquele mesmo local ouvindo a confissão.
É chegado agora o momento de comentar sobre os personagens e história, adentrando no campo dos spoilers mais sérios, portanto fica aqui o ALERTA DE SPOILERS!
Os personagens são um outro aspecto positivo do filme, um grande benefício do elenco ser pequeno é que todos ficam muito bem estabelecidos. Para começar, não dá para falar de outra que não a assassina principal interpretada por Mia Goth. Obviamente, a protagonista do filme tem mais tempo de tela e mais destaque, a questão é que a atuação absolutamente brilhante de Mia Goth simplesmente puxa todo o destaque para sua personagem, o espectador começa a vê-la em tela e fica preso em cada cena com cada nuance e trejeitos da protagonista.
Pearl tem uma personalidade cativante, ela obviamente é uma assassina cruel, mas ao mesmo tempo ela tem momentos que beiram a inocência, seja quando ela dança e conversa com os animais ou quando deixa transparecer para o projetista do cinema sua ingenuidade sobre o mundo. Ela não é uma vilã calculista e particularmente esperta, suas ações são impulsivas, imprevisíveis e muitas vezes é como se ela tivesse um mecanismo psicológico após os assassinatos que impedisse que ela assimilasse completamente o que acabou de fazer e ela imediatamente volta a fazer tarefas normais e agir normalmente como se seus feitos brutais não tivessem consequências em nenhum sentido.
É uma experiência absolutamente cativante assistir a um filme como esse em que a personagem está sempre em foco e a atriz está sempre entregando tudo em cada cena: ela ri, dança, chora, grita, briga, e a performance de Mia Goth adiciona uma nota de perfeição sobre cada nuance demonstrada. Claro que, embora Pearl sozinha roube a atenção 100% do tempo, existem personagens com importante significação dentro do enredo, tal como sua mãe, Ruth (Tandi Wright).
Nenhum dos outros personagens são exatamente o que aparentam a princípio e Ruth é uma das surpresas para o espectador nesse sentido. De primeiro momento, ela pode parecer uma personagem do tipo ‘mãe/madrasta malvada’ que não apoia os sonhos da filha e é simplesmente má por ser má, e foi uma grata surpresa ver que ela não é o que aparenta.
As palavras e atitudes de Ruth podem ser duras e severas, especialmente quando ela aparece restringindo a liberdade de Pearl e desencorajando seus sonhos, entretanto, Ruth é uma mulher extremamente racional, lógica e pragmática em muitas de suas colocações. Ela critica o descuido de Pearl ao ir para a cidade e correr o risco de contrair a gripe espanhola, doença que já vitimou seu marido (Matthew Sunderland) e o deixou com sequelas permanentes, sendo incapaz de falar e se movimentar, dependendo de Pearl e Ruth para sobreviver.
Ruth não só se preocupa com a gripe espanhola retornar para o seu lar, ela tem medo da violência e do preconceito que sua família pode sofrer por eles serem imigrantes alemães; além de carregar o fardo de não poder mais viver uma vida feliz ao lado do homem que ama, isso fez dela uma pessoa muito ressentida e fechada com suas emoções, mantendo foco prático nas atividades necessárias para manutenção da casa e da fazenda. Ruth também afirma saber que sua filha não é normal e que já viu as coisas que ela faz quando acha que ninguém está olhando, provavelmente se referindo ao assassinato de pequenos animais feitos por Pearl, manifestando sua crescente violência interior até que essa vitimou sua própria mãe.
A morte de Ruth pelas mãos de Pearl é um momento particularmente chocante, a crescente tensão na cena, que vai de uma discussão violenta até a mãe sendo acidentalmente queimada viva na lareira enquanto o pai assiste indefeso e aterrorizado, é um grande ponto alto do filme.
Existem outros dois personagens que valem muito a pena serem comentados aqui, o Projecionista (David Corenswet) e a cunhada de Pearl, Mitsy (Emma Jenkins-Purro). Ambos os personagens se mostraram muito dispostos em ajudar a garota com seu sonho, e talvez se Pearl não estivesse cada vez mais consumida pela insanidade e a malícia, ela poderia realmente ser ajudada. Primeiramente, começando pelo projecionista do cinema, no começo ele simplesmente pode passar a impressão de um rapaz da cidade que quer seduzir Pearl e talvez se aproveitar de sua ingenuidade, mas ele vai se mostrando um personagem cada vez mais prestativo e genuinamente parece estar gostando de Pearl, apesar dela ser casada e seu marido Howard (Alistair Sewell) estar servindo na primeira guerra.
O envolvimento deles é bem construído desde que ele a conheceu no cinema, apesar de que Pearl está muito mais interessada na oportunidade que ele mencionou de levá-la para a Europa e ser uma artista após a guerra. Então chega o momento em que Pearl surta na fazenda e passa a acreditar que ele não vai mais cumprir com o que propôs, e a garota o mata e descarta seu corpo e veículo no lago.
Essa é uma morte bastante decente, assim como a da mãe de Pearl. Os efeitos práticos empregados de sangue, queimaduras e ferimentos são muito bem empregados, entretanto, a morte mais marcante do filme tem de ser a morte de Mitsy, a cunhada, pois não só o machado de Pearl de certo modo se tornou um símbolo do filme, como também, novamente, os efeitos práticos empregados no desmembramento são bons.
Claro, falando em Mitsy, é preciso comentar sobre essa personagem que também surpreendeu de certo modo, pois quando ela chega na fazenda vestida de forma completamente pomposa e ostentando seu claro status social elevado, é de se esperar que ela seja arrogante ou despreze os sonhos de Pearl, mas o que ocorre é que Mitsy aparenta ser uma garota muito gentil e inclusive convida Pearl para um teste em uma companhia de dança que selecionaria apenas uma garota; a partir daí, esse se torna o grande objetivo de Pearl no filme.
A cena do teste de dança é excelente! Ela é muito bem dirigida, coreografada e intercala visualmente não só todas as fantasias de Pearl com o cinema, a dança e arte que ela cultivou desde o início do filme, mas também intercala com sua intensa necessidade de ser aprovada nesse teste e poder finalmente sair da fazenda. Nesse ponto ela já havia assassinado seus pais e o projecionista e estava apostando tudo nesse momento, ela precisava ser aprovada, no entanto, ela não é selecionada simplesmente por conta dos juízes preferirem uma garota loira.
Pode-se dizer que o clímax do filme é a cena em que uma Pearl completamente devastada psicologicamente após o teste confessa para Mitsy todos os seus crimes e desvios de conduta, desde quando matou pequenos animais, abortou o filho dela com Howard sem que ele soubesse, o traiu com outro homem e assassinou seus pais. O ressentimento que Pearl manifesta pelo marido nessa cena tem tudo a ver com a razão pela qual ela matou todos os personagens, pois Howard tinha condições financeiras boas e sua família podia facilmente livra-lo de ir, e mais do que isso, ele poderia viver com Pearl em qualquer outro lugar que a deixasse mais perto de seu sonho de ser uma dançarina.
A culminação desse momento é a morte de Mitsy, apesar da garota ter tido consideração e empatia o bastante para não falar que foi aprovada no teste, Pearl descobre e num surto de inveja e injúria, ela assassina sua cunhada. Nesse ponto, a mudança no semblante da personagem é nítida e beira um estado de luto e tristeza constantes, é o ponto em que ela assimila as palavras de sua mãe sobre a insignificância dos seus sonhos e passa a acreditar que sua vida é ali naquela fazenda sendo apenas aquilo que todos esperavam que ela fosse.
Com essa convicção se formando, resta a ela seguir com sua rotina normal, o que inclui colocar os cadáveres dos pais para jantar à mesa e cuidar deles como se ainda fossem vivos. O sorriso doentio de Pearl no final do filme ao ver Howard contemplando aterrorizado os cadáveres representa não só o medo de que ele a rejeite, como também a realização de que ela não consegue mais esconder sua violência e crueldade, um sorriso de boas vindas que deveria ser algo natural e confortante, tornou-se em uma representação da anormalidade e da impossibilidade de qualquer redenção e reparação pelos atitudes brutais de Pearl.
No fim, Pearl é um filme sobre como isolamento e um ciclo de frustrações em todos os campos da vida fizeram aflorar o que havia de mais vil e cruel em uma pessoa que estava em um processo de degradação mental constante. É um filme bem feito, perfeitamente amarrado com seu sucessor cronológico e a personagem sem dúvida seguirá como um ícone do cinema slasher e terror no geral!
Alagoano, Redator do EvilHazard, fã do universo do Terror e apaixonado por Resident Evil