O “Horror” é um dos gêneros mais difíceis de dominar em qualquer aspecto da ficção. Mesmo quando a discussão do horror subjetivo é deixada de lado, o horror atinge o seu melhor quando os artistas por trás de seus respectivos projetos não apenas entendem como fazer algo esteticamente assustador, mas também deve haver uma compreensão do que torna algo assustador, como isso assusta de forma diferente grupos de pessoas, e o que o público vai tirar da história.
O terror tem sido um dos gêneros de ficção mais lucrativos, devido aos artistas do terror explorarem os medos coletivos de seus respectivos públicos, público este que aumentou dez vezes com a introdução do terror nos videogames. Já na década de 1980, os videogames começaram a experimentar o gênero terror, muitas vezes sendo relegados ao uso de mecânicas pesadas de texto para compensar a falta de fidelidade gráfica necessária para dar vida a algumas das ideias mais ambiciosas. Os primeiros jogos de terror se assemelhavam mais aos romances visuais, mas as sementes foram plantadas para que o horror tomasse conta da indústria de jogos.
Grande parte de seu sucesso teve a ver com a mudança de perspectiva que se tornou mais frequente nos anos 90. Embora os jogadores estivessem bem cientes de que o personagem que estavam controlando era completamente autônomo em sua criação, o horror se tornou incrivelmente visceral simplesmente com os próprios jogadores controlando as ações de seu protagonista. De repente, éramos os idiotas infelizes caminhando por um corredor escuro.
Foi só quando Alone in the Dark foi lançado em 1992 que o “survival horror” começou a tomar forma nos videogames. Embora, sem dúvida, fossem bem ásperos os padrões de jogo, o uso de modelos 3D no jogo em um ambiente hostil serviu como um verdadeiro avanço para o terror em videogames. Os jogos de terror não estavam mais confinados a sustos textuais, já que o terror chegava ao jogador em tempo real, oferecendo o que parecia ser a representação mais realista de uma luta contra zumbis já concebida.
Embora Alone in the Dark tenha plantado as sementes do horror através da perspectiva, a franquia Resident Evil o aperfeiçoou nas décadas seguintes.
Resident Evil, lançado pela primeira vez em 1996, é frequentemente creditado como o pai do survival horror e, embora não tenha sido o primeiro, popularizou a ideia e continuou a desenvolvê-la graças ao sucesso comercial e de crítica do primeiro jogo. O que se seguiu foram duas décadas cheias de sequências, spin-offs, filmes, livros, peças teatais, e uma mão amiga no aperfeiçoamento do gênero de terror de sobrevivência que continua a ser lucrativo até o século 21.
Mas décadas de jogos, todos focados no mesmo conceito de zumbis tentando te matar, soa como uma receita para o esgotamento, certo? É tolice acreditar que inúmeras sequências baseadas no mesmo conceito não envelhecerão depois de um tempo. O que era assustador no início pode não parecer tão assustador no segundo, terceiro e quarto jogo, não importa quantos novos inimigos sejam adicionados para apimentar as coisas. Para se manter atualizada, uma franquia deve fazer o que for preciso para acompanhar as últimas tendências de jogos.
Isso é algo em que a franquia Resident Evil prosperou, sobrevivendo a 5 gerações de jogos aumentando consistentemente a aposta. Não estamos simplesmente falando em termos da tradição abrangente em si. Enquanto a crescente história de conspiração do governo gerou muitos memes na era digital de hoje para as pessoas desfrutarem, Resident Evil manteve um controle rígido sobre seu conceito mais simples e popular: lute contra monstros enquanto tenta se manter vivo.
Desde a primeira encarnação de Resident Evil 7: Biohazard e os recentes remakes de RE2 e RE3, seu objetivo em cada jogo é sobreviver a cada provação com as várias armas à sua disposição. É um conceito emocionante mesmo em um nível superficial, permitindo que você se sinta no controle dos monstros e zumbis que tentam matá-lo. Isso pode parecer uma coisa simples para qualquer game de terror e ação entender, mas a habilidade magistral de Resident Evil sobre a perspectiva lhe dá uma vantagem sobre uma boa parte da competição.
A perspectiva é um dos aspectos mais cruciais não apenas do design do game, mas de decidir exatamente como o mundo do jogo será visto pelos jogadores. Os artistas podem pensar em alguns mundos de jogo malucos e ambiciosos, mas a perspectiva dos jogadores ditará se esses mundos serão desperdiçados ou não. Embora pareça uma mera escolha estética, as mudanças de perspectiva ao longo da franquia não apenas refletem as capacidades de jogo de seus respectivos períodos de tempo, mas demonstram uma manipulação magistral do horror de sobrevivência e os vários tons pelos quais os jogos passaram ao longo dos anos.
O primeiro Resident Evil foi inspirado em Alone in the Dark, adotando uma aparência semelhante com modelos 3D operando em fundos estáticos e pré-renderizados em tempo real. Jogando como Chris Redfield e Jill Valentine, os jogadores navegariam por uma mansão cheia de zumbis e outras criaturas enquanto tentavam descobrir o mistério por trás da mansão.
O jogo original é inegavelmente datado, gerando incontáveis memes em torno da famosa dublagem (todo mundo lembra do momento “Jill Sandwich”) e a qualidade gráfica agora rudimentar. Os jogos 3D estavam ganhando força, mas era um trabalho em andamento na época do lançamento de Resident Evil, por isso a câmera está travada para todos os ângulos mostrados no jogo. Embora isso representasse uma limitação óbvia para o que os desenvolvedores eram razoavelmente capazes de fazer, também desempenharia um papel importante na criação do principal fator de medo da franquia.
Em que a franquia de horror da Capcom, e eventualmente Silent Hill, experimentariam mais sucesso é no “medo pela imprevisibilidade”. Os monstros podem saltar para o jogador com uma simples mudança de ângulo. Talvez a sala que o jogador explorou esteja vazia, então eles seguem para o corredor. Depois que a famosa tela de carregamento com a abertura de uma porta terminar, você pode ser saudado por um corredor vazio ou por um zumbi sedento de sangue cambaleando em sua direção.
Um dos saltos mais famosos do jogo vem de um cachorro zumbi quebrando uma janela enquanto você caminha por um corredor aparentemente seguro, destruindo para o jogador qualquer sensação de conforto remanescente na mansão. Mas o que torna esses sustos tão desconfortáveis é a posição estacionária da câmera. Sem movimentos rápidos ou mudanças de perspectiva de um ângulo diferente da mesma sala.
A câmera fica completamente imóvel, forçando o jogador a testemunhar seus avatares sendo perseguidos por zumbis como se estivessem sendo vistos em um monitor de segurança, o que por si só era bastante incomum em 1996. Esse tipo de distância do personagem cria uma sensação fugaz de controle através desta lente de terceira pessoa e quando você leva em consideração os controles desajeitados da época, seu personagem está quase indefeso, mesmo com armas em seu arsenal.
Esta é uma estratégia que se tornaria um gancho para as próximas duas grandes entradas na série, com Resident Evil 2 e RE3: Nemesis. Mesmo com algumas pequenas melhorias gráficas, as duas sequências exibem o mesmo estilo de jogo 3D em uma configuração pré-renderizada estática, com o bônus adicional de ter novas criaturas gigantes perseguindo o jogador: o Tirano (ou Mr. X, se você preferir) em RE2, e Nemesis em RE3. Mesmo com a mudança no cenário, a perspectiva ainda parecia fria e tensa, já que os jogadores foram condicionados a não se sentirem seguros em qualquer canto de qualquer mapa.
Embora algo assim seja agora um artifício da maioria dos jogos de terror, os três primeiros jogos Resident Evil popularizaram o survival horror e tiveram a vantagem acidental de uma mecânica de jogo 3D limitada para ajudar a manipular a perspectiva contra os jogadores. Mas agora que esse formato era familiar aos jogadores, era inevitável que os sustos se tornassem menos frequentes. É natural que os jogadores se ajustem ao mundo do jogo, arriscando um potencial esgotamento se a série continuar nessa direção.
Mas Resident Evil estava ciente disso, levando à sequência renovada (e renomada) que é Resident Evil 4, lançado em 2005. Não mais prejudicado por ferramentas de desenvolvimento desatualizadas e com uma revisão gráfica atualizada, RE4 introduziu a perspectiva de terceira pessoa “por cima do ombro” que ainda está forte em 2020. Em vez dos ângulos de câmera fixos habituais, a perspectiva do jogador estava mais perto do que nunca do personagem principal enquanto elevava a violência para um nível de terror de ação, se afastando do horror de sobrevivência no processo.
Mas só porque o título era supostamente menos “assustador” do que os três primeiros jogos, a manipulação da perspectiva ainda beneficiava o jogo, emocionando e assustando os jogadores através do caos absoluto. Embora os três primeiros jogos tenham sido bastante selvagens em termos de violência, a mudança da câmera significava que a perspectiva do jogador estava muito mais próxima da ação. Os três primeiros jogos foram frios em sua apresentação dos monstros atacando o jogador, mas aqui, havia um novo nível de intimidade que criaria um novo lote de pesadelos.
O horror ainda está ligado a um ambiente imprevisível trabalhando contra o jogador, mas a nova mudança de câmera significa que a área atrás de você é uma nova fonte de cautela. Você matou tudo na sua frente, mas tem certeza de que não há nada mais escondido atrás de você? A câmera fixa dos três primeiros jogos pelo menos deu ao jogador uma visão do layout da sala, mas em RE4, você controla a câmera, o que significa que enfrentar os horrores da vila dependia quase inteiramente de vocês. Isso poderia tornar o jogo de ação mais emocionante e, como mostraram Uncharted e Just Cause, funciona bem para o gênero de ação.
No entanto, há algo visceral sobre a perspectiva de Resident Evil 4 e as duas sequências seguintes que parece uma atualização na fórmula da franquia, sem perder de vista seu polpudo núcleo de terror. Mesmo com os jogos mudando para um tom mais voltado para a ação, o terror de se sentir oprimido por uma onda aparentemente interminável de monstros ferozes foi um substituto válido para a perspectiva afetada da câmera de segurança dos três primeiros jogos.
Mas logo, o terror dos videogames se estendeu além da terceira pessoa: o terror em primeira pessoa estava longe de ser uma novidade, mesmo durante os três primeiros jogos. Jogos como Doom, Wolfenstein, System Shock e Half-Life já haviam experimentado ação-terror em 1ª pessoa, reinventando lentamente o formato de jogo de uma maneira que ainda vemos hoje com Call of Duty, Overwatch, Halo e simuladores de caminhada com muitas histórias, como Gone Home e What Remains of Edith Finch.
Embora o terror tenha se envolvido na primeira pessoa, o século 21 viu um aumento no horror na primeira pessoa que viria a definir o gênero de terror de sobrevivência. Jogos como F.E.A.R., Condemned: Criminal Origins e Bioshock ajudaram a revolucionar a ação de terror em primeira pessoa para a era moderna, alcançando patamares que não haviam sido alcançados duas décadas antes. Na primeira pessoa, por cima do ombro tornou-se através dos olhos, aproximando ainda mais o jogador do mundo do jogo.
Amnesia: The Dark Descent, lançado em 2010, forneceu o “start” para o terror em primeira pessoa entrar em território inexplorado com o personagem sendo quase completamente indefeso aos terrores que os jogadores poderiam combater em títulos mais focados em ação. Amnesia e logo jogos como Slenderman, Outlast e P.T. colocaram um foco mais forte na atmosfera e no desamparo do jogo de ação dinâmica e, com Resident Evil 6 recebendo críticas mistas por sua falta de sustos em 2012, parecia que a franquia tinha finalmente chegado ao esgotamento.
É incrível o que uma nova perspectiva pode fazer para mudar tudo isso, hein?
Em 2017, Resident Evil entrou em um novo território para a franquia com o lançamento da sequência/soft reboot Resident Evil 7: Biohazard. Embora tecnicamente ocorrendo no universo RE, RE7: Biohazard tirou os jogadores da louca história de conspiração do governo de antes e apenas espalhou-a aqui, abrindo caminho para uma história independente sobre um homem chamado Ethan Winters que procura uma residência aparentemente abandonada para encontrar sua esposa desaparecida, Mia. Logo Ethan (e também os jogadores) descobrem que a casa não está exatamente vazia.
O que era, nomeadamente, uma franquia de terror de ação sobre a corrupção no governo, é quase sempre substituído por uma história de fuga contida, contada inteiramente na primeira pessoa. O pesadelo que é a residência Baker é vivenciado em um novo nível de imersão, forçando a perspectiva através dos olhos do personagem. Isso se aplica às cenas também, passando na frente de Ethan e, por extensão, nossos próprios olhos, aplicando uma atmosfera mesquinha e visceral que faz tudo ao seu alcance para jogar tudo no jogador.
Em 2017, os jogos de terror em primeira pessoa estavam entre os mais populares do mercado. A comparação moderna mais próxima com RE7: Biohazard é Outlast, já que ambos são jogos em primeira pessoa da perspectiva de um homem entrando em um pesadelo em um local aparentemente abandonado. Mas RE7: Biohazard ganha uma vantagem ao adicionar um sistema de combate renovado que traz consigo um novo nível de imprevisibilidade.
As armas e o combate corpo a corpo podem não parecer muito diferentes, mas a perspectiva de 1ª pessoa re-treina o jogador para pegar tudo o que sabe sobre o gameplay de Resident Evil e aplicá-lo às lentes de confronto de RE7: Biohazard. Monstros não estão mais apenas oprimindo o personagem que você está interpretando na tela, agora eles querem VOCÊ e vão persegui-lo de uma maneira não muito diferente do medo que muitos têm de olhar para um corredor escuro, antecipando algo que saltará sobre eles.
Realmente não é de se admirar que RE7: Biohazard seja considerado um retorno à boa forma para a franquia, atualizando sua jogabilidade e voltando às suas raízes de terror de sobrevivência que faltavam nos últimos episódios. É esse tipo de horror polpudo puro e não adulterado que ajudou os remakes de Resident Evil 2 e 3 a terem sucesso, mantendo um domínio firme sobre o survival horror, mesmo quando os remakes voltaram para a terceira pessoa. A resposta a RE7: Biohazard apenas solidificou essa nova direção para a franquia Resident Evil e a próxima sequência, Resident Evil Village, e sua perspectiva de 1ª pessoa é uma prova concreta disso.
Além disso, é a prova de que Resident Evil, em sua vida útil de mais de 20 anos, conseguiu usar o poder da manipulação de perspectiva para se reinventar de forma consistente para um público em constante mudança. O início da franquia foi humilde, mas influente para o estado de survival horror em geral. Quando o público ansiava por uma boa mistura de ação e terror, RE4, RE5 e RE6 foram entregues, e quando o terror em primeira pessoa se tornou a próxima explosão dos videogames, RE7: Biohazard chegou (apesar de quase tarde) e ainda capitalizou com um jogo puramente Resident Evil em um novo formato.
Atribuir o sucesso da franquia à mudança de perspectiva seria tolice, mas a atenção constante para uma maneira renovada de vivenciar Resident Evil mostra o amor e o cuidado empregados em fazer de RE uma franquia de terror atemporal. Mudanças de perspectiva podem enriquecer ou destruir uma história e a disposição de Resident Evil de mudar a apresentação enquanto mantém a fórmula da franquia contribui para uma abordagem ousada aos videogames, que valeu a pena no longo prazo!
Adaptado de Bloody Disgusting
Redator do EvilHazard, paulista, 21 anos, gamer amante de jogos de computador, fã de videogames antigos e de jumpscares em jogos de terror.