A essa altura, é de conhecimento praticamente geral que o tema central da franquia Resident Evil é o bioterrorismo, salientando a infecção que vai além das mutações físicas causadas pelos agentes biológicos, que é a corrupção do caráter diante do poder que o terror biológico oferece. Diante disso, estamos acostumados a jogar com os protagonistas da série, conhecer as histórias e as lutas que protagonizam contra esses males mencionados, contudo, o que em alguns casos pode passar batido por um olhar menos atento é o quanto o bioterrorismo precede os eventos que são contados mais explicitamente na narrativa dos jogos.
Isso se dá de várias formas, não só por subtramas que contam histórias de inúmeras vidas ceifadas para dar andamento aos experimentos que geraram as armas biológicas que o jogador enfrenta, mas também por meio de eventos que precedem a existência de personagens que movimentam a narrativa principal dos jogos.
Com essas informações em mente, a proposta desse artigo é comentar algumas instâncias em que a franquia Resident Evil nos agraciou com vislumbres de histórias ocorridas em passados longínquos, muito anteriores às sagas de Leon, Chris, Jill e Claire e até mesmo de personagens como Spencer, Wesker e Miranda, e mostrar como a dualidade entre os que combatem o bioterrorismo e os que o fomentam é um tema antigo dentro da lore.
A cruzada contra o Las Plagas e o Los Illuminados
O primeiro tópico a ser comentado dentro do mérito que o artigo propõe é justamente a instância mais recente ocorrida dentro da franquia, não só na possível cronologia em que os eventos se passam, mas também em relação ao fato dessa história ter sido incrementada e enriquecida no remake de Resident Evil 4.
O passado medieval para os eventos de RE4 é algo que já é conhecido por alguns apreciadores da lore da franquia há muito tempo, entretanto, o remake fez questão de adicionar e reescrever alguns fatos, como já mencionado anteriormente. Sabe-se que a presença do culto Los Illuminados na região da vila é uma fato consumado desde o passado medieval da lore do jogo, quando no contexto histórico da Reconquista espanhola, as forças da inquisição entraram em conflito com os cultistas do parasita Las Plagas; vale ressaltar que os responsáveis por combater o culto foram principalmente ancestrais de Ramón Salazar.
Entretanto, o remake de RE4 fez questão de adicionar coisas como o nome e informações sobre os ancestrais de Salazar que atuaram diretamente no combate ao parasita e aos cultistas que o utilizavam para ganhar poder e realizavam sacrifícios humanos dedicados ao organismo. Graças às novidades adicionadas à lore, sabe-se que Gregório Salazar foi o primeiro grande ancestral e fundador da casa de Salazar na região de Valdelobos, sendo um militar a serviço da coroa católica que liderou um destacamento de soldados para exterminar os cultistas do parasita e implantar o catolicismo na região da vila.
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Salazar foi atraído para a região após relatos de um culto que sacrificava pessoas em honra a uma divindade estranha que era considerada um demônio pela igreja, e que viria a ser intitulado de ”Las Plagas”.
Após o sucesso em sua cruzada de sangue, Gregório Salazar conquistou o título de conde da região e foi contemplado com um castelo nas imediações de onde exerceria controle sobre todo o território e comandaria suas investidas belicosas contra os cultistas do Las Plagas. Após a morte de Gregório, existem registros sobre seu filho, Hipólito Salazar, um guerreiro corajoso que morreu devido aos ferimentos em batalha contra uma invasão de Las Plagas (presumivelmente a Plaga Araña) que partiu diretamente do subsolo do castelo. Hipólito ficou famoso não só por ter destruído os ”demônios” mas também por ter selado os parasitas nas cavernas abaixo da fortaleza erguida por seu pai.
Essas cavernas voltariam a ser reabertas anos mais tarde quando o oitavo descendente e castelão, Ramón Salazar se aliou ao culto Los Illuminados e ao décimo quinto profeta da linha de sucessão, Osmund Saddler. Salazar conferiu total e irrestrito acesso do culto aos parasitas fossilizados para que conduzissem experimentos e encarregou seu médico pessoal, Dr. Isidro Uriarte Talavera, de conduzir experimentos antiéticos brutais utilizando o parasita em empregados do castelo.
A origem do Vilarejo das Sombras de Resident Evil Village
Muito antes de Miranda usurpar o controle do vilarejo localizado nas montanhas da Romênia por meio de um direito teocrático autoconcedido, aquele lugar foi um assentamento antigo de uma civilização há muito tempo perdida. Essa civilização ancestral construiu estruturas e estátuas de pedra altamente complexas que resistiram às eras de esquecimento, abandono e mesmo possível catástrofe que eliminou boa parte daquele povo, ou forçou a sua ida para algum lugar desconhecido.
A civilização que habitou esse lugar em um período tão distante foi liderada por quatro homens misteriosos que viriam a se tornar ancestrais lendários no folclore daquele povo: Cesare, Berengario, Nichola e Guglielmo, os respectivos ancestrais das nobres casas Dimitrescu, Beneviento, Moreau e Heisenberg. Monumentos foram erguidos em honra a esses homens e, provavelmente, eles foram os primeiros sacerdotes ou profetas do culto do deus negro, o nome que foi dado à religião pagã que reverenciava a supercolônia fúngica do megamiceto que tinha o poder de armazenar a consciência e material genético de todos que morriam naquele solo. Não se sabe ao certo se os quatro fundadores eram mutantes, mas se de fato eles foram os primeiros profetas do deus negro, não seria de se admirar que eles tenham utilizado o credo em torno do megamiceto ou o poder do mesmo para benefícios e ganhos próprios, como por exemplo, direitos políticos baseados em teocracia.
Após muito tempo do desaparecimento dessa civilização, a região e seus novos habitantes encararam mais momentos difíceis com o contexto de guerras por expansão territorial no século XV (provavelmente as invasões Otomanas na Romênia) argumento que é reforçado quando o jogo explica que o Castelo Dimitrescu, habitado pelos descendentes de Cesare, foi construído no século XV e tanto o castelo quanto seus habitantes no jogo são analogias ao Castelo Drácula e seus personagens do eomance de Bram Stoker, que por sua vez, tem seu personagem principal, o Conde Drácula, baseado em Voivoda Vlad Tepes, famoso por combater com ferocidade os invasores da Romênia.
Assim como ilustra um arquivo deixado por um soldado na fortaleza que viria a ser habitada pelos Licanos, este soldado manifestou grande curiosidade pelas origens da civilização antiga que havia deixado aquelas ruínas, agora habitadas pelos ”hereges”. No entanto, não existem indicações fortes na lore do jogo do momento exato em que o catolicismo foi implementado na região da vila, porém sabe-se que isso realmente ocorreu devido a presença de uma igreja possivelmente católica no lugar, que foi tomada por Mãe Miranda, esta que reestabeleceu a adoração ao deus negro que vigorava no passado daquela região, quando os quatro ancestrais lendários reinavam. Diante disso, Miranda provavelmente também aproveitou-se da ancestralidade dos 4 lordes de Resident Evil Village com os 4 fundadores e criou toda a mística em torno de seus generais, fazendo-os parecer figuras divinas que estavam a serviço do deus negro, representado por Miranda, sua profeta absoluta.
A busca pelo guerreiro supremo
Séculos antes que Spencer, Marcus, Ashford e seus devaneios eugenistas pudessem conduzi-los até os confins da África, no local onde viria a existir a zona autônoma de Kijuju, os Ndipaya já expandiam-se pela região. A tribo veio a descobrir uma caverna na região que continha um segredo aparentemente belo e inofensivo: flores.
As flores descobertas pelos Ndipaya cresciam nas condições que a caverna provia com suas especificidades de temperatura, geografia, umidade e incidência de luz solar, entretanto, ao entrar em contato com a flor, muitas pessoas da tribo adoeceram e morreram de um pestilência súbita e avassaladora, contudo, alguns sobreviviam e ganhavam habilidades e longevidade extraordinárias, tornando-se reis e poderosos guerreiros. Os avanços e benefícios criados com o poder da planta ajudaram a desenvolver os Ndipaya para uma grande civilização nas cavernas com estruturas complexas até para a época.
As flores que viriam ser conhecidas séculos depois como Sonnentrepe, ou ”Escadaria para o sol”, continham um patógeno ancestral e extremamente poderoso, um vírus RNA chamado de Vírus Progenitor. Este fato, por razões óbvias era completamente desconhecido para os Ndipaya, que passaram a associar o poder contido na planta como algo sagrado e importante para ritos de passagem.
Não demorou muito tempo para que a situação saísse do controle, visto que os Ndipaya começaram a usar as flores em animais, causando mutações horrendas e sendo, provavelmente, responsáveis pelas criações das primeiras B.O.W.s animais da franquia. Visto que os animais tornaram-se deformados, perigosos e incontroláveis, os Ndipaya trancaram eles no fundo de um fosso e passaram a oferecer carne e sacrifícios para apaziguar as criaturas, contudo, eventualmente as B.O.W.s escaparam e causaram um massacre que dizimou boa parte da tribo.
Os animais mutantes acabaram matando uns aos outros e causaram a própria extinção, contudo, os Ndipaya sobreviventes recuaram para as imediações e ficaram com medo de voltar tão cedo para as ruínas de seu lar e passaram a aguardar o momento de retornar com um novo rei para tomar o que era seu por direito.
Observando esses eventos no passado da franquia, ficam nítidos os padrões que ajudaram a perpetuar e criar as fundações para o futuro do bioterrorismo em Resident Evil e os eventos principais dos games. Claramente, o uso ou a criação de mecanismos de ganho de poder político e militar em torno dos agentes biológicos é um grande fator chave, uma vez que figuras como Gregório Salazar prosperaram por meio do combate ao Las Plagas, e outros como os quatro fundadores do vilarejo e os Ndipaya conseguiram criar consolidadas estruturas de civilização e poder em torno respectivamente do megamiceto e do Vírus Progenitor, algo que já serve como precedente distante para práticas do próprio governo americano nos eventos recentes da franquia, que até o momento em que Raccoon City foi obliterada, se beneficiava do mercado de armas biológicas para influenciar cursos de guerras, consolidar poderio militar e consequentemente, controle de regiões menos favorecidas do planeta.
O fator religioso é bastante preponderante para essa conclusão, uma vez que nos três casos, a grande constante presente foi a mistificação do poder fornecido pelos agentes biológicos e seres humanos que souberam se beneficiar disso para a criação de autoridade religiosa e, consequentemente, um ganho de poder irrestrito sobre massas que aprenderam a adorar mutações e deformidades causadas por doenças.
Discussões e reflexões como essas só mostram como Resident Evil é uma franquia complexa e rica, capaz de criar histórias empolgantes, interessantes e que instigam o jogador a olhar cada vez mais para entender o funcionamento de padrões dentro dos precedentes que sua lore estabelece, e talvez com isso, ajudar a perceber padrões e questões do mundo real.
Alagoano, Redator do EvilHazard, fã do universo do Terror e apaixonado por Resident Evil