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EvilLibrary – Resident Evil: No Escuro Absoluto: O Penamistão e as guerras da vida real

Este texto contém spoilers de Resident Evil: No Escuro Absoluto.

Resident Evil: Infinite Darkness ou No Escuro Absoluto tem uma porção de referências históricas e paralelos políticos não exatamente sutis em seu enredo. Embora esses elementos tenham sido explorados com superficialidade pela execução final da obra, acredito que é bastante enriquecedor que nós os exploremos de modo a aprofundarmos o que a série em si não aprofundou.

Este é um texto com temas sensíveis e que possivelmente podem gerar polêmicas, mas aqui o debate deve ser feito com respeito tanto aos debatedores quanto aos grupos sendo discutidos. Se alguém vier de preconceito contra árabes, afegãos, chineses, muçulmanos ou de qualquer outro grupo cultural, terá seus comentários sumariamente apagados.

Penamistão e…Afeganistão?

O Penamstan ou Penamistão é um país fictício claramente localizado nos limites do Oriente Médio com a Ásia Central. Isso é evidente por uma infinidade de fatores, como o nome “-istão” e a aparência de suas cidades que remete claramente a uma organização urbana comum nesta porção do mundo.

Em ordem: Penamistão em Infinite Darkness, Cabul no Afeganistão, Aleppo na Síria, Cairo no Egito. Imagens do WikiCommons.

 

Até mesmo a bandeira do Penamistão é semelhante às de diversos países do Oriente Médio. As cores verde, preto e vermelho são comummente vistas nas bandeiras dos países ligados ao pan-arabismo e também de vários países muçulmanos não-árabes (como Irã e Afeganistão), embora os significados das cores variem entre si. Também vemos o triângulo que é comum aos países árabes e um emblema que geralmente é algum símbolo nacional ou um brasão dinástico.


As semelhanças entre as bandeiras de diversos países com a do Penamistão.

 

Mas, muito mais do que isso, Infinite Darkness mostra claramente onde o Penamistão fica no mapa:

Além de fazer fronteira com a China, o grande alvo de Wilson, o Penamistão está localizado em uma região da Ásia Central que na vida real corresponde principalmente ao território do Afeganistão.

Devemos levar em consideração que a Guerra Civil do Penamistão em torno da qual se desenrolam os acontecimentos da série aconteceu em 2000. Isso a coloca muito próxima no tempo dos atentados de 11 de setembro de 2001 e de suas consequências, mais especificamente a intervenção dos Estados Unidos no Afeganistão e a Guerra do Iraque (2003-2011), cujos resultados levaram a instabilidades locais semelhantes às do Penamistão.

Um pouco de contexto histórico

Tanto a Guerra do Iraque quanto a intervenção no Afeganistão ocorreram como uma espécie de resposta do governo George W. Bush ao 11 se setembro. Em ambos os casos, além da retaliação, havia um discurso de “levar a democracia” a estes lugares, assim como vemos um dos debatedores dizer sobre o Penamistão em um vídeo que Claire assiste durante sua investigação. Vale dizer que a série não abordou a questão da religião, focando na instabilidade política e econômica.

Primeiro veio o Afeganistão, onde estaria sediado Osama Bin Laden, líder da organização terrorista Al-Qaeda que executou os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono. Os EUA obtiveram grande apoio internacional para esta empreitada, inclusive de outros países muçulmanos que provavelmente temiam ser taxados com o novo estereótipo do “terrorista islâmico” que se construiu nessa época e da própria população afegã que queria se ver livre do grupo fundamentalista Talibã que dominava o país.

Já com o Iraque, a coisa foi um pouco diferente. Os EUA acusavam o país de ser aliado da al-Qaeda e de possuir armas de destruição em massa, logo, de ser uma ameaça para o mundo. Entretanto, a maior parte da comunidade internacional e a própria ONU se posicionaram contra a Guerra do Iraque, pois consideravam as acusações infundadas, o que se confirmou posteriormente. Hoje, em geral, os americanos consideram que a operação foi um erro.

Manchete da Folha de São Paulo de 18 de março de 2003, três dias antes do início da Guerra do Iraque. Ela demonstra os ânimos exaltados do período e a agressividade da política externa de George W. Bush após o 11 de setembro. A qualidade da imagem é ruim assim mesmo.

A grande questão é que o Afeganistão e o Iraque foram completamente destruídos após as intervenções militares dos Estados Unidos e nunca se recuperaram. Ainda hoje há grandes dificuldades para reconstruir a economia e a estabilidade política locais. As tropas americanas ficaram no Iraque até 2011 e se retiraram do Afeganistão somente em 2021 (e sabemos que o que aconteceu depois mostrou que a ocupação não cumpriu o que prometeu), recebendo inúmeros olhares céticos sobre suas intenções nestes países agora tão frágeis.

Voltando a Resident Evil, o que ocorreu no Penamistão foi uma guerra civil, interna ao país. Segundo a investigação de Claire, antes da ONU chegar a uma solução, os Estados Unidos enviaram suas tropas, e isso foi interpretado pela milícia local (um dos lados da guerra, sendo que o outro provavelmente deve ser o governo penamistamita) como uma invasão.

Isso não é simples paranoia, porque diversos países da África e da Ásia passaram por violenta colonização por parte de países europeus, e a presença militar americana muitas vezes traz o medo de um retorno disso à tona.

Wilson mandou suas tropas para o Penamistão em 2000 para testar sua nova arma biológica e o inibidor. Assim como na vida real, a presença do exército americano no país fictício também recebeu muitas críticas, inclusive de aliados dos Estados Unidos:

Em 2006, Wilson quer enviar as tropas ao Penamistão novamente, por meio da aliança que ele quer que o Presidente Graham faça com o país. E, mais uma vez, a ideia é mal vista por todas as pessoas ali que parecem ter algum mínimo de bom senso, pois todos conhecem o desejo inflamado de Wilson de pressionar uma guerra com a China e como dominar o Penamistão seria um caminho para isso.

Temos, ainda, a questão econômica a se considerar. Wilson revela que queria levar o caos biológico para o Penamistão para lá vender seu inibidor, aproveitando-se da vulnerabilidade deixada pela guerra civil e por sua própria ação anterior no país. Na vida real, a questão econômica mais mencionada pelos críticos do interesse dos EUA no Oriente Médio diz respeito às grandes reservas de petróleo da região e à ampliação de sua influência econômica.

China

No mundo real, Iraque e Irã foram contra a intervenção estadunidense no Afeganistão por considerarem que os EUA queriam mesmo é criar bases militares ali mais do que combater o terrorismo. A região é bem próxima da Rússia (lembremos que a URSS havia caído havia menos de 10 anos) e também de aliados dos EUA, como Paquistão, Israel e Arábia Saudita. Este não era um temor sem fundamento, pois tanto Iraque quanto Irã já haviam sido aliados dos EUA no passado e tinham certa noção de que tipo de interesse poderia haver em uma intervenção assim.

E a China entra nisso como? Já mencionei que o Penamistão fica na fronteira com a China em Resident Evil. Wilson queria colocar tropas no país exatamente para ter acesso fácil à China em um possível conflito que ele estava incitando dentro do governo americano.

O crescimento da China havia sido justamente um dos motivos pelos quais os EUA haviam rejeitado a Convenção de Armas Químicas e Biológicas de 1972 no universo de RE, de modo a se armar contra uma ameaça a sua hegemonia, e para mim isso ficou encaixado de forma interessante no lore.

E, é claro, no mundo real estamos vivendo um momento em que de facto está se agravando a relação entre China e Estados Unidos, especialmente após o surgimento do coronavírus. Já em 2004, o historiador britânico Eric Hobsbawm sugeriu que uma possível causa para uma nova guerra global poderia ser “decorrente da falta de vontade dos Estados Unidos de aceitar o surgimento da China como superpotência rival” [p.44]. Wilson levou isso bem a sério.

Imagino, portanto, que parte da polêmica sobre a política da vida real em Infinite Darkness vem daí. Parece que, de alguma forma, Resident Evil resolveu incorporar ao seu já tradicional discurso anti-belicista uma mensagem de “se forem tretar com a China, façam isso de forma diplomática e não por meio de uma guerra, seus trouxas”.

Ah, e só como easter egg: quando eu via o Wilson tendo piti por causa da China, só conseguia pensar neste vídeo aqui (e a série provavelmente foi produzida ainda durante o mandato de Donald Trump):

Conclusões

Com esse tanto de paralelos, dá pra entender por que a Netflix não quis que falassem de política nas resenhas, né? Confesso que fiquei até receosa de abordar estes temas tão delicados da nossa história recente aqui, já que a internet está cheia de gente maluca. Mas essa é, também, uma oportunidade de aprendermos mais uma vez com Resident Evil.

Apesar da superficialidade, Infinite Darkness se preocupou com detalhes incríveis, como uma bandeira verossímil para o Penamistão e paralelos com tantos acontecimentos reais que por uma questão de espaço e de foco eu sequer consigo abordar todas as possibilidades, como a inspiração em conflitos mais atuais como na Síria. É uma pena que um background tão rico tenha ficado apagado por uma execução ruim, porque a premissa de era muito boa e foi o que me fez gostar da série, apesar dos pesares.


Referências:
  • HOBSBAWM, Eric. Globalização, hegemonia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • Irã, Iraque, Síria, EUA, Rússia: a história de lealdades e rivalidades que explica a crise atual. BBC Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51029316 Acesso em 13 de julho de 2021.
  • MOREIRA JUNIOR, Hermes. O Governo George W. Bush e sua Guerra Contra o Terror: A nova orientação tática à estratégia norte-americana. 2011. 168 f. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais, Linha de Relações Internacionais, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2011.
  • Onze de setembro | Nerdologia https://www.youtube.com/watch?v=ul7qtxAMwNI Acesso 14 de julho de 2021.
  • PELLEGRINI, Ramon Trindade. MARTA, Felipe Eduardo Ferreira. “Memórias do 11 de setembro de 2001: o discursos de Bush e o prenúncio da invasão do Afeganistão”. In Revista Cenas Educacionais. Caetité, Bahia, v.3m n.e8246, p.1-28, 2020.
  • SIMÕES, Edson Emanoel; PERILLO, Eduardo B. F.; MIGUEL, Jair Diniz Miguel. “Indústria e militarismo”. In COGGIOLA, Osvaldo (Org.). Dinâmica da Economia Mundial Contemporânea. São Paulo: Stortecci, 2003.

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